Última edição de 2024 do Projeto Vozes recebe representantes de comunidades negras e discute desafios e obstáculos atrelados ao racismo e à intolerân
Última edição de 2024 do Projeto Vozes recebe representantes de comunidades negras e discute desafios e obstáculos atrelados ao racismo e à intolerân
Quarta, 13 de novembro de 2024 às 21:07
Relatos sobre preconceito e discriminação e o desejo por reparação nortearam a edição do Projeto Vozes nesta terça-feira, no auditório da JFALCrédito da foto: Secom JFAL
A sétima edição do Projeto “Vozes: narrativas sociais e diálogos com o Sistema de Justiça”, realizada para celebrar o mês da Consciência Negra, reuniu magistrados, servidores, estudantes, professores universitários e outros profissionais interessados em conhecer um pouco mais dos relatos de quem sofre preconceito de cor, de raça e de religião. Realizado na tarde desta terça-feira, 12, no auditório da Justiça Federal em Alagoas (JFAL), a iniciativa contou com a participação de representantes de entidades de defesa da causa da população negra, que buscam o respeito e trabalham pela igualdade social. O evento marca, também, o encerramento do projeto no ano de 2024.
O coordenador do projeto, juiz federal Antônio José de Carvalho Araújo, aproveitou para fazer uma avaliação das etapas deste ano. “Este é um espaço de voz, um espaço democrático, onde buscamos compreender as vivências de quem enfrenta o racismo estrutural e intergeracional. Com este evento, buscamos contribuir para a construção de uma pauta antirracista que perpasse as instituições do sistema de Justiça, escolas, órgãos de segurança pública e a sociedade como um todo”, afirmou o magistrado.
Juiz federal Antônio José destacou o objetivo do Projeto Vozes, de construir um espaço antirracistaCrédito da foto: Secom JFAL
Para ele, é responsabilidade de todos os profissionais do Direito buscar a desconstrução desses conceitos de racismo, sejam eles quais forem. “Reconhecemos que há uma longa história de estereótipos e preconceitos profundamente enraizados que precisam ser enfrentados”, alertou o juiz Antônio José. “É uma responsabilidade de todos os profissionais do Direito trabalhar para desconstruir essas barreiras, muitas das quais assimiladas deliberada ou inconscientemente pelas pessoas e repetidas, no caso do racismo, como projeto de poder, em um país com quase 400 anos de escravidão”, complementou ele. “Este evento é um convite a todos para essa reflexão e para uma transformação em direção a uma Justiça que acolhe, escuta e atua em prol dos direitos humanos”, finalizou.
Para a juíza federal Flávia Hora Mendonça, a iniciativa é importante para a formação do magistrado como julgadorCrédito da foto: Secom JFAL
A juíza federal Flávia Hora Mendonça, também coordenadora do projeto, junto com o juiz Antônio José, defendeu a necessidade de adoção de políticas públicas capazes de reduzir a dívida histórica com a população negra. “O evento permitiu ouvir histórias potentes, tanto de relatos envolvendo o racismo estrutural, como de luta do movimento negro para ver realizados os direitos fundamentais básicos da pessoa humana, negados desde a escravidão no Brasil. Há uma dívida histórica, possivelmente impagável, que precisa ser amortizada com a adoção de políticas públicas compensatórias que permitam a necessária e urgente participação negra na vida política e econômica, em representatividade adequada”, resume a juíza.
Ela acrescentou a importância do projeto na formação do magistrado como julgador. “O Projeto Vozes não é apenas uma iniciativa de inclusão, mas sim de maturação na formação do magistrado, que deve ser sempre contínua. A existência de um debate já é um fator importantíssimo para promover uma sociedade antirracista”, finalizou a juíza Flávia Hora Mendonça.
Mãe Mirian, Patrimônio Vivo de Alagoas, apresentou seu relato sobre as dificuldades que enfrenta por ser adepta de religião de matriz africanaCrédito da foto: Secom JFAL
Patrimônio Vivo de Alagoas
Patrimônio Vivo de Alagoas, com 90 anos de idade, a Iyá Binan, nome religioso de Mirian Araújo Souza Melo, a Mãe Mirian, palestrante no evento, inspira as novas gerações que representam a cultura afro no combate ao racismo e à intolerância religiosa. “O preconceito, a intolerância religiosa e a discriminação se resumem a uma única coisa: ignorância. Sou filha de uma mãe branca e de um pai preto e quando minha mãe queria vingar qualquer raiva do meu pai ela descontava em mim, porque nos parecíamos. Ela falava que meu nariz era feio, me chamava de negra beiçuda, falava mal do meu cabelo”, contou a sacerdotisa. O racismo não foi a única discriminação sofrida por Mãe Mirian. A intolerância religiosa também esteve sempre muito presente desde que ela se encontrou no candomblé. “Até em ônibus, tem gente que vira a cara, cospe. Já fui chamada de diabo, macumbeira e não sou nada disso”, lamentou.
A fundadora do projeto Acotirene, Thayse Melo, falou sobre suas perspectivas sociais em relação ao racismo ainda vivenciado nos dias de hoje. “Um dos maiores fatores que ocasionaram minha depressão e ansiedade foram os insultos e outros episódios de racismo que já sofri. Hoje, trabalho para os meus filhos não encontrarem racismo até mesmo dentro de casa como eu encontrei. Muita gente me diz que não penteio o cabelo dos meus filhos porque tenho preguiça. Eu não penteio porque quero que eles sejam livres”, relatou. A presidente da coordenação feminina quilombola de Alagoas - As Dandaras, Genilda Maria Queiroz da Silva, participou do diálogo e expressou algumas indignações. “É um desafio muito grande para a comunidade quilombola de ter direito às suas terras. É preciso mais políticas públicas, a demarcação de terra é como uma arma apontada para você”, destacou.
Estudantes de Direito de persas faculdades acompanharam a programação no auditório da JFALCrédito da foto: Secom JFAL
Racismo para classes sociais
A superintendente de Políticas para Igualdade Racial do Estado de Alagoas, Manuela do Nascimento Lourenço, afirmou a necessidade de manutenção do racismo para algumas classes sociais. “As experiências tratadas aqui são comuns entre nós, mulheres e homens negros. Parte de uma ignorância proposital para manutenção de privilégios pelo Estado”, considerou.
A fundadora e co-coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas Afro Alagoano Quilombo, Sirlene Gomes, falou sobre a necessidade de compensações que devem ser tomadas pelos representantes públicos em relação à segregação sofrida pelas comunidades negras. “O Estado brasileiro precisa reparar a dívida histórica que tem com o povo negro. O racismo ainda é um instrumento de poder utilizado pela branquitude”, relatou. “As graves violações dos direitos humanos não prescrevem, devem ser reparadas”, foi o que disse a professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Lígia dos Santos Ferreira.
Durante a roda de conversa, a professora falou sobre a importância das políticas públicas na extinção de um racismo já enraizado. “As políticas de reparação histórica servem como afirmação de algo que a sociedade negativou. Temos que destruir as teorias racistas do Estado brasileiro”, complementou.
Decisões jurídicas a partir do racismo
O racismo incrustado em diferentes âmbitos da social, inclusive no meio jurídico e penal, também foi um ponto levantado pelo advogado e membro da diretoria do Instituto do Negro de Alagoas, Leandro Rosa. “Temos que racionar que muitas decisões jurídicas revestidas de caráter técnico são tomadas a partir do racismo. Isso nos leva ao racismo institucional formado a partir do racismo estrutural. Racializar é olhar para uma pessoa negra do início ao fim do processo. Essa racialização deve ser feita através de um letramento, é necessário haver um protocolo de atendimento em cada instituição”, esclareceu.
Advogado Pedro Gomes (terno azul) apresentou declarações sobre as leis brasileiras que não foram feitas para a população negra, na sua visãoCrédito da foto: Secom JFAL
O advogado e secretário adjunto da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/AL, Pedro Gomes, também complementou o raciocínio das diferenças raciais dentro do Sistema de Justiça. “As leis brasileiras foram feitas para aprisionar, eliminar e punir as pessoas negras e não para defendê-las. O acesso à Justiça não foi feito para nós. Estamos aqui, mais uma vez, provando ao estado brasileiro que ele foi ineficiente em nos exterminar”, destacou Pedro.
A promotora de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos, Alexandra Buerlen, esteve presente durante toda a roda de diálogo e destacou sua posição como pessoa branca em busca do direito das pessoas negras. “Como mulher branca, o que mais posso fazer é ouvir e dar importância a esse projeto que é tão importante, principalmente porque ainda precisamos de maior representatividade no Sistema de Justiça”, contou. O procurador regional dos Direitos do Cidadão, Bruno Lamenha, também destacou seu papel de ouvinte, em um lugar que não lhe compete a fala como pessoa negra. “Eu estou aqui hoje muito mais numa posição de escuta e reflexão. O Sistema Judiciário ainda é muito sustentado por ideais racistas e precisamos urgentemente agir em busca de uma mudança em relação a isso”, declarou.
Magistrados prestigiaram a última etapa do Projeto Vozes de 2024Crédito da foto: Secom JFAL
Vozes
O Projeto Vozes, desde o início do ano, tem sido um espaço que reúne representantes do Sistema de Justiça com o objetivo de ouvir e melhor compreender os problemas vivenciados pelos segmentos sociais invisibilizados, excluídos socialmente e que permanecem em estado de vulnerabilidade.
As edições anteriores abordaram as marisqueiras; a população em situação de rua; famílias com pessoas com Síndrome de Down; refugiados; famílias atípicas (com pessoas que se enquadram no Transtorno do Espectro Autista) e, por último, mas não menos importantes, as comunidades negras em Alagoas. A participação no projeto é aberta ao público, que pode se inscrever através do site da JFAL. O Projeto retorna em 2025, buscando dar visibilidade a outros segmentos que também precisam da escuta do sistema de Justiça.
Secom JFAL